domingo, 21 de julho de 2013

Para entender a crise institucional da separação de poderes

Em tempos de choque do Congresso com o Executivo e Judiciário, cabe uma reflexão sobre a choradeira de nossos representantes

 
Tudo começou lá no final do século XVIII pouco antes da revolução francesa, maior e mais prolongado uso da guilhotina na história, quando um barão desocupado chamado Montesquieu, sob influência dos tomadores de chá britânicos como Locke resolveu teorizar um sistema de governo capaz de impedir a concentração absoluta de poder nas mãos de um único déspota. Em pleno iluminismo, entre uma e outra golada de vinho na bodega, surgiu a ideia de separação de poderes em três esferas: legislativa, executiva e judiciária, interdependentes, porém dissociadas, na esperança de que cada qual limitasse a outra, mais tarde chamado nos States de princípio de pesos e contrapesos (checks and balances), também vulgarmente conhecido como: "fica na tua que eu tô na minha".
 
A coisa acabou pegando e veio se aprimorando desde então. Assim, na ampla maioria das democracias ocidentais atuais, encontramos um congresso ou parlamento formado pelo voto popular, por decorrência representativo dos vários substratos sociais, com a responsabilidade de elaborar as leis e fiscalizar sua aplicação, um poder executivo centrado no presidente (regimes presidencialistas) ou primeiro ministro (nos parlamentaristas) com atribuição de realizar as políticas públicas e um judiciário, formado por juízes que derivam sua legitimidade de processos de nomeação derivados dos outros poderes (aqui a indicação é do presidente e a confirmação pelo senado, exatamente como no modelo norte americano do qual, aliás, copiamos a coisa toda). Até aí, tudo na santa.
 
O problema, por aqui, começou com a manifesta inoperância do Congresso Nacional que não bastasse trabalhar três dias por semana com dois recessos por ano, utilizava seu tempo para discussões extremamente politizadas e de forte anseio popular como, por exemplo, incluir no dia do índio a confecção de cocares ou criar a semana dos desempregados oriundos da atividade seringueira do oeste do Acre. Não bastasse, percebeu o poder executivo que para conseguir aprovação de qualquer coisa minimamente relevante no parlamento, era obrigado a incluir emendas no orçamento da União para atender reivindicações do quilate do bolsa Calheiros para os pobres e infelizes portadores do malfadado sobrenome, Associação Internacional do Poder Cósmico Alfabetizador, dirigido por uma meio prima-irmã da concunhada do Sarney para os maranhenses que desejam uma cadeira na ABL ou a criação da Praça Collorida, local para manifestações políticas a favor de pedidos de impechment.
 
Ai pensou o presidente (qualquer e todos eles): "Assim não dá, assim não pode." e resolveu deixar para lá o Congresso, avocando os poderes legislativos, de criação de leis, por meio de medidas provisórias. E lá se foi a nação com a quase totalidade das normas sendo editadas com base nas decisões do chefe do poder executivo. Mas aí começou o problema dos atributos das MPs que deveriam observar relevância e urgência. Tudo bem, pensou o governante... Alterar a cor do uniforme do chefe do porto fluvial da ilha de Lost para preto? Super relevante, afinal cada cor tem uma função cromoterápica bem definida e o preto transmite austeridade; super urgente, afinal é necessário moralização na condução portuária... E continuava a baldúrdia.
 
Então em 2001 o nosso parlamento resolveu editar a Emenda Constitucional 32, não porque estava irritado com a usurpação de suas funções pelo Executivo, mas porque precisava justificar os 50 assessores, quotas de passagens de avião, gasolina, modess, pirulitos de morango e outros mimos, além dos gordos salários que transformam nossos "representantes" nos mais caros do mundo. Certo, daí limitaram as medidas provisórias a certas matérias e ressalvaram os tais pressupostos de urgência e relevância.
 
Alterações que, como se depreende, por exemplo, da MP 620/13 (programa médicos para o Brasil) foram muito bem assimiladas pelo Executivo http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Mpv/mpv620.htm. Pior do que criar leis, agora se admite sua alteração e revogação por MP, ora como pode um presidente alterar algo elaborado pelo Congresso? Em qualquer país não pode, aqui, como se pode notar, vale tudo, mesmo que não coexistam minimamente os pressupostos necessários para a medida.
 
Resta que a crise da separação dos poderes já é em muito anterior à entrada em cena do poder judiciário. Mas vamos a essa etapa. Em qualquer Democracia civilizada o poder judicante é negativo, ou seja, é a última linha de defesa e guarda dos mandamentos constitucionais. Por que? Simples, porque é um pilar que visa impedir agressões à vontade de Estado esboçada no Texto Maior constitucional. Resta que tal ente (judiciário) não visa criar normas ou direitos, apenas impedir excessos dos outros dois por força de momentos que vem e vão ao sabor da opinião pública e que não podem descaracterizar os objetivos preconizados pelo legislador constituinte.
 
Hummm... Pois é, em síntese compete ao judiciário tão somente extirpar do ordenamento o que contrarie a vontade constituinte. Ocorre que, mais uma vez, constatou-se a absoluta inoperância do Congresso em dar conta de suas atribuições. A coisa começou, em verdade, com os mandados de injunção, remédio criado pela própria Carta Magna para viabilizar direitos consagrados no texto maior àqueles que por inércia do parlamento não os pudessem utilizar. Para ficar em um exemplo o direito de greve dos funcionários públicos que aguarda edição de lei há mais de uma década.
 
Em princípio, entendeu a Corte Suprema que não cabia ao judiciário regular direitos não previstos, aí remetia uma recomendação ao Congresso para que o fizesse. Sem ser muito esperto, evidente que o plenário dava de ombros e lasque-se o cidadão. Isso motivou a alteração de posição da Corte para assegurar, no caso posto a seu exame, o exercício dos direitos previstos na Constituição. "Golpe de Estado, bradaram os congressistas, aberração, só nós podemos criar leis". E se não criam caras pálidas? Dane-se a população? Como a pergunta é difícil e os quinhentos Tiriricas não entenderam a questão, acharam melhor deixar para lá essa parte.
 
Claro que o Supremo abusa, vai legislando como o Executivo até porque não tem como atender às reivindicações super republicanas do parlamento de asfastar a rua até fazenda de um ou colocar postes de led no loteamento do outro e assim vai estendendo os seus poderes, inclusive criando leis como a que admite as uniões homoafetivas (não sou contra, mas que não tem lei, não tem).
 
Então na inércia de um poder legislativo que não legisla, temos outros dois que o fazem sem dó, nem piedade. Fere a separação de poderes? Claro, mas a única solução republicana passa pelo Congresso assumir suas funções ao invés de não fazer e chorar que os outros fazem. Se você e mais dois colegas recebem a incumbência de um trabalho a três e um não faz nada, qual a sua conduta? Cogite ainda que se o trabalho não for entregue vai haver sérias consequências. É a mesma situação, oras, o Congresso não faz nada e reclama quando alguém assume sua parte? Nossa crise não é de separação de poderes e sim de inoperância do legislativo com seus trezentos e doze partidos e segundos de horário eleitoral para negociar.
 
Daí, concluindo, como não faz nada e também não quer deixar ninguém fazer, o Congresso, com apoio incondicional dos mensaleiros em patética atitude revanchista, resolve reviver um ridículo Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 33/11 que, às escâncaras, visa tão somente impedir o Supremo de exercer suas funções. Pior, atrelando a eficácia de suas decisões (Súmulas, declaração de inconstitucionalidade quanto a emendas constitucionais, bem como quórum de votações) ao parlamento. Ou seja, para resolver o problema de sua inércia, vai tornar inerte também o judiciário (pelo menos assim não vai poder ser acusado sozinho).
 
Como se pode notar o poder que mais precisa realmente de reformas, aliás, urgentes, é o legislativo, com uma estrutura gigantesca, caríssima e inoperante, um verdadeiro elefante branco que somos obrigados a suportar e uma vocação muito mais dirigida a balcão de negócios do que à representação da vontade brasileira, subserviente ao governante de plantão, contanto que abertas as torneiras do erário de todos nós e acostumado ao "toma lá, dá cá" entre leis e orçamentos.

É para esse congresso que voam nossos anseios de um país melhor, dotado de um caráter atuante, fiscalizador e antenado com a realidade social  cotidiana e os anseios de nossa população já tão desencantada com corrupção e proselitismo.